terça-feira, 12 de junho de 2012

E a nossa dignidade humana?


A situação atual, quer em Portugal quer na Europa, é de tal modo obscena, a corrupção, principalmente dos valores éticos que constituíram a civilização europeia da era moderna, anda desbragadamente à solta, que calar-nos significa cumplicidade com o bando de traidores que nos desgoverna. 
Com efeito, podemos considerar que: 
A justiça é, de facto, igual para todos ou está corrompida? 
O mérito é o princípio da promoção social ou este valor ético está corrompido? 
A liberdade de expressão de pensamento e de informação é garantida ou está corrompida? 
A educação, a saúde e o trabalho estão garantidos em situação de igualdade a todos os cidadãos ou estão corrompidos?
 Em primeiro lugar, ressalta a promiscuidade entre o poder económico e o poder político. 
São os interesses privados que se sobrepõem ao bem comum. Nas últimas duas décadas, por todo o mundo, os lucros das grandes empresas agrícolas e industriais resultaram, sobretudo, mais de resultados financeiros que de resultados operativos. Os proveitos dos grandes conglomerados financeiros são muitíssimo superiores aos proveitos resultantes da atividade económica. Os fluxos financeiros internacionais que não são contrapartida de qualquer atividade económica são incomparavelmente maiores que os fluxos resultantes de trocas comerciais. A atividade especulativa é muito superior à atividade económica. 
A promiscuidade entre órgãos de informação social e os interesses dos grupos económicos é de conhecimento generalizado. 
Os estados da União Europeia, nas relações entre si, apenas prosseguem os seus interesses particulares que nem sequer são nacionais mas apenas do interesse privado de alguns conglomerados industriais e financeiros. 
A concentração dos rendimentos aumentou significativamente nas últimas décadas, alterando, praticamente em todos os países e blocos económicos, a relação entre lucros e salários. 
Os acréscimos dos rendimentos do capital não são destinados para investimentos adicionais mas para atividades especulativas. 
O valor ético do progresso social deixou de ser praticado contando apenas o aumento da produção e da produtividade. Isto implica que a saúde, a educação, a cultura, o lazer dos cidadãos perde espaço para a obrigatoriedade de produzir. O desenvolvimento integral do Homem deixou de fazer sentido. 
O Homem deixou de ser o destinatário das políticas económicas para passar a ser considerado como simples fator de produção. Nas palavras sábias de Eduardo Galeano o ser humano tornou-se recurso humano. O aumento do desemprego, a explosão da criminalidade, a desorientação da juventude, o recrudescimento do ideário nazi-fascista e a fome são considerados como meros acidentes conjunturais… 
Trata-se da outra face do neoliberalismo vigente. Tudo tem valor monetário…Tudo é suscetível de ser comercializado. A amoralidade desagregadora dos valores que aglutinam a Sociedade não deixa lugar ao altruísmo e é consequência da precaridade e da desvalorização do Trabalho. O reconhecimento do mérito deixou de fazer sentido para jovens que não conseguem qualquer emprego. 
 A existência de populações cada vez mais pobres, sem nada a perder, limita a sociedade de homens livres, pois diante da urgência de sobrevivência não importa participar da “coisa pública”, ocorrendo, assim, impedimentos do exercício da cidadania e favorecendo derivas totalitárias. 
A teoria económica dominante e as “troikas” que lhe estão subjacentes não analisam a realidade dos países onde atuam para determinar as medidas que lhe são conformes. Preferem, pelo contrário, alterar a realidade em conformidade com os pressupostos ideológicos que os formam, querendo fazer-nos acreditar na balela de que serão os mecanismos automáticos dos mercados que resolverão tudo. 
Acresce que o individualismo hedonista, próprio da sociedade consumista, recusa a subordinação do indivíduo às regras racionais coletivas e alheia-o da “res-pública”. 
Raymond Barre, conhecido economista, académico e político conservador francês escreveu “Não podemos mais deixar a economia nas mãos de um bando de irresponsáveis de trinta anos que só pensam em dinheiro” 
Jurgen Habermas prestou o seguinte depoimento: “A minha maior preocupação é a injustiça social, que consiste no facto dos custos socializados do falhanço do sistema atingirem com maior dureza os grupos sociais mais vulneráveis”…”este programa de submissão desenfreada do mundo da vida aos imperativos de mercado é acompanhado de um “enfado da política” ao qual não é alheia a ascensão ao poder de uma geração desarmada em termos ideológico-normativos, incapaz de assumir objetivos, causas e esperanças”. 
O atual estado de coisas é criticado por pensadores socialistas de todos os matizes, republicanos, humanistas laicos e religiosos, por desempregados e precários, por reformados e pensionistas, por trabalhadores em geral e mesmo por alguns conservadores e liberais. 
A questão que se coloca, no sentido de retomar a plenitude dos valores éticos que formaram a modernidade evitando que sejam corrompidos, é qual será a plataforma que permitirá unir todos estes cidadãos descontentes, que se encontram dispersos, e retomar a senda do progresso do Homem europeu? 
Temos presente que atualmente é muito improvável deixar, mesmo no médio prazo, o universo do capitalismo. Resta-nos civilizar e domesticar, a partir de dentro, a dinâmica selvagem deste capitalismo, pois essa é, certamente, a vontade da maioria das populações. 
 A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece no seu art.º 1º que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos” 
O pensamento utópico de Jurgen Habermas constitui um desafio interessante para os povos europeus. Temos presente que “utopia” não é aquilo que nunca se realiza mas aquilo que ainda não se realizou ou, como complementa Eduardo Galeano, a utopia é o caminho… 
Trata-se agora de transpor para os espaços transnacionais o conceito de dignidade humana, que segundo Habermas é “fonte moral de que se alimentam os conteúdos de todos os direitos fundamentais”, pois “a dignidade humana é a mesma em todo o lado e para todos”. Não pode haver uma dignidade humana para alemães, finlandeses e holandeses; outra para gregos, portugueses e espanhóis e outra, ainda, para as populações esfomeadas que atravessam em balsas o mediterrâneo. 
“Os direitos fundamentais só podem cumprir politicamente a promessa moral de respeitar a dignidade humana de todas as pessoas se agirem em articulação uns com os outros de forma igual, em todas as categorias”. 
“O nexo interno entre dignidade humana e direitos humanos é o único que permite estabelecer aquela ligação explosiva da Moral ao Direito, na qual é necessário proceder à construção de ordens políticas mais justas. Esta carga moral sensibiliza os cidadãos das sociedades mais ou menos liberais para um aprofundamento cada vez mais intenso dos direitos fundamentais existentes e para o perigo, cada vez mais agudo, de deterioração das liberdades garantidas.” 
A União Europeia “deu-nos” uma ilusão de riqueza em troca da destruição do tecido produtivo. Ora, é necessária uma uniformização dos níveis de desenvolvimento dentro de uma área monetária com economias nacionais heterogéneas. A crise do euro decorre mais da crise bancária do que da falta de disciplina orçamental. A atividade especulativa, sobretudo a financeira, terá que ser fortemente regulada e fiscalizada. 
Lutar contra a corrupção dos valores morais que formaram as sociedades modernas saídas das revoluções americana e francesa e das lutas sociais da primeira metade do século XX e defender a dignidade humana, através da consideração dos direitos humanos que a consubstanciam, parece ser um caminho suficientemente amplo para agregar as aspirações dos povos europeus. Finalmente, importa recordar que “os parâmetros da discussão pública não mudam sem o trabalho subversivo e persistente dos movimentos sociais” e a angústia que sentimos, sintetiza-se numa questão. Ainda haverá tempo? Estamos presos por semanas, no máximo por meses. A França aceitará uma união política, isto é, um governo comum com controlo parlamentar comum para a zona euro? A Alemanha aceitará uma União Fiscal e Financeira, isto é, a europeização das dívidas nacionais através de eurobonds e programas de crescimento sustentável, para evitar uma depressão na zona euro e impulsionar a recuperação das zonas menos desenvolvidas? 
Se assim não for, pela terceira vez num século, desta vez por meios pacíficos, a Alemanha destrói a Europa.

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